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INVESTIGAÇÃO DAS EXPERIÊNCIAS ESPIRITUAIS E RELIGIOSAS NA PSICOSE




Artigo publicado pelo Conselho de Psicologia de São Paulo (CRP-SP), parte da coleção Psicologia, Laicidade e as Relações com Religião e Espiritualidade


Área da Psicologia - Reforma antimanicomial e espiritualidade

Ligia Splendore – Psicóloga, especialista em Transpersonal, CRP 28224-6, ALUBRAT, São Paulo-Brasil, ligiasplendore@gmail.com

Sean Blackwell – Sociólogo, Toronto-Canada, seaninsp@gmail.com


Ementa

Apesar da categoria de Problemas Espirituais ou Religiosos ter sido inserida no DSM-IV-TR com os esforços de David Lukoff et al desde 2002, poucas pesquisas aprofundando a temática proposta por essa categoria foram realizadas.


Apresentação

Este artigo propõe uma reflexão sobre a importância da validação das experiências espirituais e religiosas enquanto manifestação inerente da subjetividade humana. Estudos sobre espiritualidade e religiosidade têm sido realizados cientificamente demonstrando como esses temas impactam na saúde e na qualidade de vida. A participação da psicologia, entretanto, é fundamental para uma melhor compreensão dessas experiências que, muitas vezes, são vistas como sinal de patologia levando a diagnósticos psiquiátricos imediatos sem que a devida atenção seja proporcionada. A construção de diagnósticos diferenciais entre experiências saudáveis e patológicas indica para estudos que incluam o rigor científico, os saberes tradicionais e a necessidade de um novo modelo de homem.


Texto Principal

O filósofo francês Michel Foucault apresenta um panorama histórico da loucura em seu livro História da Loucura na Idade Clássica retratando os diferentes papéis assumidos pela loucura no decorrer dos tempos. Foucault mostra como a loucura substituiu a lepra no final da Idade Média como principal objeto de exclusão e supressão de elementos da sociedade da época, descreve o caráter desconfortante do louco na Renascença quando seu acesso à igreja era proibido e os loucos eram chicoteados publicamente ou perseguidos até deixarem as cidades e traz o universo imaginário do homem renascentista através da Nau dos Loucos, barcos que levavam sua “carga insana”, os “loucos”, de uma cidade para outra (Billouet, 2003). A obra de Foucault tornou-se conhecida por usar imagens polêmicas que, por vezes, assumem função ilustrativa ou constitutiva. Seu trabalho polemizou a loucura, causando certo enaltecimento desta e questionou o saber-poder da psiquiatria, acirrando o movimento da antipsiquiatria ou da reforma antimanicomial do século XX.


A psiquiatria enquanto ciência médica, juntamente com as reformas psiquiátricas a partir desta época, foi responsável por transformar a forma como entendemos e tratamos a loucura. Atualmente fala-se em saúde mental e não mais em doença mental e a “loucura” passou a ser descrita em termos de transtornos mentais.


Mais recentemente, contudo, uma nova perspectiva tem impactado na forma como definimos a saúde. Desde a Assembleia Mundial de 1983, a inclusão de uma dimensão “não material” ou “espiritual” de saúde vem sendo discutida extensamente, a ponto de haver uma proposta para modificar o conceito clássico de saúde pela Organização Mundial de Saúde (OMS) definindo essa como: “um estado dinâmico de completo bem-estar físico, mental, espiritual e social e não meramente a ausência de doença.” (Panzini, R.G. et al, 2007).


Além disto, nos últimos 10 anos foram publicados inúmeros estudos científicos provando o impacto positivo da espiritualidade e da religiosidade na saúde. Muitos desses artigos apontam a importância de elucidar a diferença entre religião e espiritualidade, segue a definição proposta por Koenig e colegas (Koenig et al, 2001):


“Religião é um sistema organizado de crenças, práticas, rituais e símbolos projetados para auxiliar a proximidade do indivíduo com o sagrado e/ou transcendente. Espiritualidade é a busca pessoal pelo entendimento de respostas a questões sobre a vida, seu significado e relações com o sagrado e transcendente, que pode ou não estar relacionada a propostas de uma determinada religião.”

Embora de forma bastante simplificada, graças ao trabalho de David Lukoff e outros autores, em 2002 foi introduzido no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TRTM) a categoria diagnóstica de Problemas Espirituais ou Religiosos. Essa categoria pode ser usada quando o foco de atenção clínica é um problema religioso ou espiritual, porém, não é sinal de patologia, exemplos incluem: experiências angustiantes que envolvem a perda ou questionamento da fé; problemas associados com a conversão a uma nova fé; questionamento de valores espirituais que podem não estar, necessariamente, relacionados com uma igreja ou religião institucionalizada.


O trabalho de David Lukoff é extenso no que diz respeito ao tema da espiritualidade e saúde mental, sua pesquisa traz referências importantes sobre como as crises psicoespirituais podem se manifestar de diferentes formas trazendo resultados igualmente diversos. Com base em revisões de literatura e 30 anos de experiência clínica, Lukoff propõe os seguintes critérios para o diagnóstico preciso de uma experiência mística com características psicóticas: (1) sobreposição fenomenológica com uma experiência mística, (2) sinais indicativos de prognóstico de um resultado positivo, (3) nenhum risco significativo para comportamento homicida ou suicida (Lukoff, 1985).


Essas experiências veem sendo estudadas pela psicologia recebendo distintas denominações como: Consciência Mística - William James, Experiência Numinosa - Carl Jung, Experiência Culminante - Abraham Maslow, Experiência Cósmica - Pierre Weil, e Emergência Espiritual - Stanislav Grof. Diferentes tradições e culturas também fazem referência a estas experiências: no Hinduísmo - Samadhi; no Budismo - Nirvana; no Zen - Satori, no Cristianismo - Estado de Graça e no Xamanismo - Iniciação Xamânica. Vale ressaltar que quando analisadas dentro dos saberes tradicionais, essas experiências não são só aceitáveis, mas são o foco da prática espiritual, algo a ser alcançado e celebrado enquanto um contato direto com o sagrado.

As características mais comuns são: unidade: desaparecimento da percepção dual; inefabilidade: a experiência não pode ser descrita com a semântica usual; caráter noético: um senso absoluto de que o que é vivido é real; transcendência do tempo e espaço; sentido de sagrado; desaparecimento do medo da morte; mudança do sistema de valores e de comportamento.


O fato das experiências espirituais / religiosas serem confundidas com sintomas psicóticos e dissociativos tem, cada vez mais, obtido destaque na psiquiatria. Um bom exemplo é o artigo publicado na revista de Psiquiatria Clínica com uma investigação de 135 artigos que apresentam pesquisas e critérios diferenciais entre experiências saudáveis e patológicas. Os resultados desse estudo indicam para: necessidade de estudos controlados; recomendação de observações empíricas que possam ser replicadas; estudos em população não clínica; utilização de maiores amostras; avaliar a experiência de modo multidimensional e priorizar estudos longitudinais (Menezes; Almeida, 2009).


Todas as correntes que buscam entender o aspecto místico da psicose encontram, porém, enormes obstáculos para serem levadas em consideração pela área médica científica, principalmente porque a ciência não aceita a possibilidade de que uma experiência psicótica poderia, em algum nível, ser benéfica e trazer resultados positivos para o ser humano. Para a psiquiatria todo e qualquer estado alterado de consciência é sinônimo de patologia, de algo que deve ser “curado”, inclui-se nesse quadro todas as experiências mais sutis (Grof, 2007):


“Até hoje a psiquiatria anglo-saxônica não faz distinção clara entre misticismos e estados psicóticos, sendo que o místico é considerado pela ciência como engano. Se uma pessoa tem uma experiência espiritual, ela pode ser internada e tratada com tranquilizantes às vezes por toda a vida.”


Stanislav Grof e John Weir Perry foram os psiquiatras que mais se aprofundaram e estudaram empiricamente as experiências psicóticas revelando um aspecto terapêutico e curativo da psicose. Eles se remetem a esse potencial de cura como algo inerente ao ser humano, uma organização natural da psique, a qual só pode ser acessada quando se leva em consideração todas as dimensões do Ser, principalmente a dimensão transpessoal, pois é no encontro com a sabedoria divina que existe dentro de cada um que o curador interno é despertado (Frances Vaughan in Walsh, 1993):


“Muitas pessoas se encontram entre o terror das trevas e o ceticismo da luz. A tarefa do terapeuta transpessoal é então assistir os pacientes no confronto de seus próprios medos e na descoberta de uma fonte de sabedoria em si mesmos.”


Em 1968, juntamente com Abraham Maslow, Viktor Frankl, Antony Sutich e James Fadiman, Stanislav Grof ajudou a criar a Psicologia Transpessoal que se ocupa do estudo do potencial mais elevado da humanidade, com o reconhecimento, compreensão e realização dos estados de consciência unitivos espirituais e transcendentes (Lajoie; Shapiro, 1992). Para se referir a essas experiências, Grof cunhou o termo de Emergência Espiritual que é definido como (Grof e Grof, 1990):


“A evolução de uma pessoa para um modo de ser mais maduro, que envolve uma ótima saúde emocional e psicossomática, maior liberdade de escolha pessoal e uma sensação de ligação profunda com as outras pessoas, com a natureza e com o cosmos. Uma parte importante desse desenvolvimento é um despertar progressivo da dimensão espiritual na vida da pessoa e no esquema universal das coisas.”

Apesar da Emergência Espiritual ser uma característica inata aos seres humanos, quando ela é muito rápida e dramática, esse processo natural pode se tornar uma crise. Grof identifica dois quadros de emergência espiritual: Crise de Emergência Espiritual (Spiritual Emergency) - sugerindo uma crise, emergência no sentido de “urgência” e Emergência Espiritual (Spiritual Emergence) - sugerindo uma oportunidade de ascensão a um novo nível de consciência, emergência no sentido de “elevação”. Durante mais de 50 anos pesquisando os estados não ordinários de consciência, Grof verificou diferentes padrões experienciais e graus de insanidade nas experiências transpessoais que podem demandar tratamentos diferenciados dependendo da natureza e intensidade do processo.


Os critérios para distinguir uma crise de emergência espiritual de uma emergência espiritual são apresentados detalhadamente no livro: A Tempestuosa Busca do Ser (Grof; Grof, 1990). São considerados sintomas de crise espiritual: experiências interiores dissonantes e de difícil integração; novas descobertas espirituais desafiadoras e ameaçadoras; dificuldade de distinguir entre as experiências internas e externas; modificação abrupta da percepção de si mesmo e do mundo; ambivalência acerca das experiências interiores podendo causar perturbações na vida diária; sensações físicas de tremores e calafrios; resistência à mudança; necessidade de estar sob controle e de discutir as experiências; confusão ao falar sobre o processo, etc. É comum a pessoa desacreditar e não gostar do processo, pois as experiências são dominadoras, parecem injustas e podem ser extremamente dolorosas.


Entre os sinais favoráveis estão: história de ajustamentos psicológicos saudáveis precedendo o episódio; habilidade de considerar a possibilidade de que o processo possa ter origem na psique da própria pessoa; confiança suficiente para cooperar e boa vontade em respeitar as regras básicas do tratamento. Ao contrário, uma longa história de vida com sérias dificuldades psicológicas, assim como comportamentos sexuais e sociais marginais, pode ser vista, em geral, como indícios de um transtorno mental mais grave.


Grof enfatiza, entretanto, que não há fronteiras bem delimitadas entre as duas condições e os critérios devem ser considerados como meras diretrizes gerais. Uma crise de emergência espiritual pode ocorrer de modo espontâneo sem ação de fatores de precipitação ou suas causas podem ser deflagradas por estresse emocional, exaustão física, enfermidades, acidentes, experiências sexuais intensas, trabalho de parto, drogas psicodélicas ou práticas intensas de meditação. Outras possíveis causas são muitas mudanças ao mesmo tempo: perdas (entes queridos, trabalho, financeira), cursos que induzem experiências intensas, vivências xamânicas, experiência próxima da morte ou práticas que podem levar ao despertar da kundalini (Grof, 2007).


Os transtornos mentais podem estar diretamente relacionados com disfunções cerebrais ou doenças de outros órgãos e sistemas do corpo, Grof ressalta que é indispensável um minucioso exame médico e psiquiátrico. A intervenção medicamentosa é, sem dúvidas, justificada quando o episódio psicótico envolve sofrimento seja a nível físico, mental ou psicológico e, principalmente, quando coloca em risco a vida da pessoa.


Por outro lado, tem se visto um uso indiscriminado de abordagens de controle e supressão que provocam o cessamento de quaisquer experiências que envolvam aspectos psicóticos sem que a origem dessas seja devidamente analisada, o que deveria ser feito, de preferência, anteriormente a decisão e definição do tratamento. Antes de interromper e suprimir essas experiências com antipsicóticos, outras opções medicamentosas menos agressivas poderiam ser recomendadas até que a natureza da experiência fosse mais bem compreendida. Grof sugere uso de tranquilizante suave ou um hipnótico para que o paciente durma e possa restituir suas energias e insiste que o tratamento deve levar em consideração cada caso individualmente podendo limitar-se a um apoio específico à pessoa em crise ou podendo envolver parentes e amigos ou grupos de apoio, deve ser flexível e criativo, respeitar a natureza individual da crise e utilizar todos os recursos disponíveis. O mais importante, afirma ele (Grof; Grof, 1989):


“É fornecer à pessoa em crise um contexto positivo para suas experiências e informações suficientes sobre o processo pelo qual ela passa. É essencial que a pessoa afaste da mente o conceito de doença e reconheça a natureza curativa da sua crise. Podem ser muito valiosos o acesso à boa literatura sobre o tema e a oportunidade de conversar com pessoas que a compreendem, em especial, com aquelas que passaram com sucesso por uma crise semelhante.”


Conclusão

O maior desafio é criar formas para que os critérios de diferenciação entre as crises espirituais / religiosas e a psicose fiquem mais claros ou, pelo menos, os fatores que possam influenciar essas experiências sejam contemplados em maior profundidade para que o aspecto potencialmente terapêutico e transformador dessas experiências seja identificado.


Grof, Lukoff, Menezes e Almeida oferecem critérios diferenciais que poderiam servir de referência para auxiliar esse processo diagnóstico. É necessário, porém, maior abertura na psicologia e na psiquiatria para que estudos nessas áreas sejam aprofundados de forma a impactar na vida das pessoas que se veem aprisionadas a diagnósticos psiquiátricos e tratamentos que não refletem a real extensão de suas experiências e, principalmente, de suas subjetividades.


Através da observação de milhares de pessoas em estados não ordinários de consciência, Grof percebeu que as dimensões espirituais da realidade podem ser experimentadas diretamente e de forma tão convincente quanto nossa experiência diária do mundo material. Ele aponta a uma grande diferença na concepção desses estados entre as tradições antigas e a visão tecnológica ocidental (Grof, 1997):


“A visão de Mundo Antiga inclui outras realidades paralelas; a morte não é o fim e sim uma passagem; dos estados não usuais de consciência nascem a mitologia e a capacidade de percepção intuitiva extrassensorial, são fontes de inspiração criativa e podem ser usados para cura de patologias. Enquanto que para a Visão de Mundo Materialista todas as experiências mais sutis são patologias.”


Oportunidades de discussões que levem em consideração os saberes tradicionais e uma epistemologia que reconheça a multidimensionalidade do Ser, tratando igualmente suas dimensões: física, mental, emocional e espiritual, são fundamentais para a o futuro da psicologia.


Referências

Billouet, P. Foucault. São Paulo, Editora Estação Liberdade, 2003.


Grof, C.; Grof, S. Emergência Espiritual: Crise e Transformação Espiritual. São Paulo, Editora Cultrix, 1989.


________ A Tempestuosa Busca do Ser: Um Guia para o Crescimento Pessoal Através da Crise de Transformação. São Paulo, Editora Cultrix, 1990.


Grof, S. Psicologia do Futuro - Lições das Pesquisas Modernas de Consciência. Brasil, Heresis Transpessoal, 2007.

Grof, C.; Grof, S. Respiração Holotrópica: Uma nova Abordagem de Auto Exploração e Terapia. Rio de Janeiro, Capivara editora, 2010.


Grof, S. Cura Profunda: A perspectiva Holotrópica. Rio de Janeiro, Capivara editora, 2012.


Koenig; H. The handbook of religion and health: a century of research reviewed. Oxford University Press, 2001.


Lajoie; Shapiro. Definitions of transpersonal psychology: the first twenty-three years. Journal of Transpersonal Psychology. 24 (1), 79-98, 1992.


Lukoff, D. From Spiritual Emergency to Spiritual Problem: The Transpersonal Roots of the New DSM-IV Category. Journal of Humanistic Psychology, 38 (2), 21-50, 1998.


Menezes, A.; Moreira-Almeida, A. O diagnóstico diferencial entre experiências espirituais e transtornos mentais de conteúdo religioso. Psiquiatria Clínica. v.36, n.2, 2009.

Panzini, R.G; Rocha, N. S., Bandeira, D. R. Fleck M. A. Qualidade de vida e espiritualidade. Revista Psiquiatria. Clínica 34, suplemento 1; 105-115, 2007.

Peres, J. Trauma e Superação: O que a Psicologia, a Neurociência e a Espiritualidade E Ensinam. São Paulo, Editora Roca, 2009.


Perry, J. W. Trials of the Visionary Mind: Spiritual Emergency and the Renewal Process. Albany. State University of New York Press, 1999.


Walsh, R., Vaughan, F. Caminhos Além Do Ego: Uma Visão Transpessoal. São Paulo, Editora Cultrix, 1993.




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